Projeto pioneiro de cientistas brasileiros, um dispositivo eletrônico que já mostrou ser melhor que qualquer ser humano na degustação de bebidas poderá servir também para fazer exames médicos e monitoramento ambiental
Em janeiro de 2002, uma notícia publicada no site da revista Nature destacava uma invenção brasileira, fruto da colaboração entre pesquisadores da Embrapa e da USP, que, como era de se esperar, rapidamente deu o que falar na imprensa nacional.
Projeto pioneiro de cientistas brasileiros, a língua eletrônica ainda esbarra em dificuldades técnicas e econômicas. [Imagem: Unesp] |
"Uma língua eletrônica portátil promete fornecer medidas gustativas apuradas e confiáveis a empresas que atualmente dependem de degustadores humanos para fazer o controle de qualidade de vinho, chá, café, água mineral e outras bebidas," dizia o artigo.
Contudo, desde então, não se tem notícia de que a língua eletrônica tenha virado um sucesso de mercado.
Teria a língua eletrônica brasileira perdido para um possível lobby dos degustadores? Teria ela se mostrado comercialmente inviável? Ou será que simplesmente fracassou em testes posteriores, mais rigorosos?
Filmes nanoestruturados
Nada disso, segundo Osvaldo Novais de Oliveira Júnior, professor do Instituto de Física da USP em São Carlos e um dos pais da língua eletrônica.
"A grande contribuição dos primeiros trabalhos nessa área, publicados naquela época, foi mostrar que era possível construir sensores extremamente sensíveis, muito mais que a língua humana, o que nos fez antever a possibilidade de fazer monitoramento ambiental e diagnóstico médico. É nisso que estamos trabalhando atualmente", conta.
A ideia agora, prossegue o pesquisador, é usar o dispositivo para outras coisas líquidas, mas que ninguém teria a insensatez de beber, como água contaminada, sangue ou gasolina.
"Nosso foco é descobrir os materiais mais adequados para cada aplicação que a língua pode ter," afirma Priscila Alessio, membro da equipe, atualmente trabalhando com os chamados filmes finos nanoestruturados, que são sensibilidade ao equipamento.
Esses filmes têm apenas 10 nanômetros de espessura e são feitos com substâncias orgânicas, substâncias nas quais o carbono é o elemento principal, eventualmente com a adição de nanopartículas, enzimas ou anticorpos.
Essa película finíssima recobre um pequeno eletrodo chamado de interdigitado, com 10 micrômetros de cada lado. Devidamente encapado, o eletrodo está pronto para fazer a medida, que é de natureza elétrica e conhecida como espectroscopia de impedância.
"Aplicamos um campo elétrico no eletrodo que está recoberto pelo filme e imerso no líquido, e analisamos a corrente que passa. O líquido vai impor alguma resistência, que é muito pequena, mas que podemos detectar e amplificar," explica Oliveira Júnior.
Dificuldades da língua
Uma das dificuldades para o avanço da tecnologia é que a sofisticação da medida se reflete na complexidade do sinal captado, que requer um complexo processamento computacional. "É um trabalho pesado de classificação de dados e inteligência artificial", afirma o pesquisador.
Além disso, para se fazer uma língua eletrônica prática são necessários diversos sensores, cada um encapado por um tipo diferente de filme fino. "Variamos o filme para aumentar ainda mais a sensibilidade da língua. É uma espécie de redundância usada para garantir que ela vai identificar a substância sem falso positivo", explica Priscila.
Uma das coisas que o grupo está tentando resolver, por meio de software, é um problema da calibração que aparece quando é preciso fazer a substituição de um dos sensores do dispositivo.
Curiosamente, eles ainda não conseguem explicar o que ocorre exatamente na amostra líquida para que uma concentração muito baixa de um contaminante altere a resposta elétrica detectada pela língua eletrônica.
Mas não é a origem misteriosa desse fenômeno o que mais intriga o físico Antônio Riul, do Instituto de Física da Unicamp, outro especialista em língua eletrônica. "O que eu acho mais interessante é quanto o filme nanoestruturado é capaz de afetar a medida. Seria possível fazê-la só com o eletrodo puro, mas com a adição do filme a faixa de sensibilidade aumenta extraordinariamente", diz. "Isso a gente também não consegue explicar direito." Para ele, o que o equipamento faz é registrar uma espécie de "impressão digital elétrica" do meio no qual está imerso.
Assim, depois de 11 anos de pesquisas, experimentos e muitos resultados promissores, o futuro comercial da língua eletrônica ainda é incerto.
Sem empresas dispostas a investir no desenvolvimento do produto é muito difícil sair da escala laboratorial, comenta Oliveira Júnior: "Sabemos das dificuldades de fazer inovação no Brasil, mas esperamos que alguma hora apareçam empresas interessadas."
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