MARCELO NINIO
Aos 14 anos, Zhang vive sob disciplina militar. Acorda às 6h e logo está enfileirada com outros 74 jovens para marchar durante 30 minutos. Os termômetros marcam zero grau.
Até o toque de recolher, rigorosamente às 21h, o dia é consumido em uma sequência intensa de atividades, como sessões de reeducação e exercícios físicos.
Zhang é a caçula de um grupo de jovens que passa meses isolado do mundo, numa clínica militar na periferia de Pequim. Vivem atrás de grades, mas não fizeram nada ilegal. O que os une é o diagnóstico em comum: são "viciados em internet".
O mais velho tem 30 anos. Todos foram levados à força pelos pais, que já não sabiam o que fazer para lidar com filhos que se desligaram da realidade para viver diante da tela do computador.
Nove em cada dez são viciados em jogos eletrônicos. Alguns foram drogados e levados inconscientes ao centro de reabilitação.
Weiwei Ji/Folhapress
Xu Yanzhang, 18, está em sua terceira internação
no Centro para Tratamento de Viciados em Internet
Outros, como Zhang, foram enganados pelos pais, que disseram a ela que iriam viajar. Quando a menina percebeu, esperneou e resistiu à internação, mas foi imobilizada por funcionários do centro e teve que ficar.
Cinco meses depois, ela já aceita melhor a situação. Lembra que passava até seis horas por dia jogando na internet e afirma que o tratamento ajuda a "controlar suas emoções".
"Mas continuo não gostando deste lugar. É muito deprimente e as aulas são pura lavagem cerebral. Isso aqui é como uma prisão", diz.
Em 2008, a China foi o primeiro país a considerar o vício em internet um distúrbio mental, conhecido como IAD (distúrbio de adição à internet, na sigla em inglês).
A classificação ainda é tema de debate. Em seu mais recente manual, a Associação Americana de Psiquiatria evitou incluir o problema na sua lista de distúrbios.
A China não precisou de mais teoria para passar à prática. Em 2009 já havia no país cerca de 300 campos de reabilitação dedicados ao vício em internet. Hoje eles estão em torno de 400.
A Folha visitou a primeira clínica surgida nessa onda, instalada no Hospital Geral da Região Militar de Pequim. Seu criador, o psiquiatra Tao Ran, gaba-se de ser um pioneiro no estudo da dependência em internet.
No seu escritório, grandes fotos das aparições na TV e de encontros com celebridades mostram uma queda do doutor pela autopromoção.
Ele não hesita em comparar a internet a drogas pesadas, como heroína, quando fala dos danos causados pelo vício ao cérebro. Tao cita uma pesquisa em que foram escaneados os cérebros de 160 viciados em internet.
Segundo o psiquiatra, o resultado mostrou que a maior mudança ocorre nos lobos frontal e parietal. Essas áreas são o "centro do corpo humano", diz Tao, por serem responsáveis por decisões, planejamento e lógica.
"O metabolismo de glicose e oxigênio caiu entre 8% e 13%, o que significa que esses jovens passaram a ter 'cérebros de jogos'. Muitas partes de seus cérebros ficaram disfuncionais", explica.
A proliferação de métodos extremos em alguns desses centros teve um desfecho trágico em 2009. Um menino de 15 anos foi espancado até a morte num campo da Província de Guangxi, sul da China.
Na clínica do Dr. Tao, a linha-dura é visível. Os tutores vestem fardas e repreendem os internos com rispidez.
Tao garante que não há força bruta em seu tratamento, baseado em atividades físicas, pílulas antidepressivas e "aulas" –aquelas que a menina Zhang chamou de "lavagem cerebral".
O objetivo, diz o psiquiatra, é "trocar a memória" dos internos, para neutralizar a sensação de recompensa do vício. O índice de sucesso é de 70%, afirma Tao.
O psiquiatra se irrita com as críticas publicadas na imprensa americana que acusaram o método chinês de reabilitação de ser contra os direitos humanos.
"Esses meninos chegam como zumbis, não estudam, não interagem com os outros. Não tratá-los é que seria contra os direitos humanos".
Ele conta que 90% dos internos são viciados em jogos on-line. Os mais populares são o Dota e o World of Warcraft (WOW). Pode ser grego para não iniciados, mas são nomes que ocupavam boa parte das vidas dos internos.
Xu Yanzhang, 18, está em sua terceira passagem pela clínica. Tímido, conta que jogava no mínimo quatro horas por dia. Mas não se considera um viciado. Por ele, estaria na escola, se preparando para o "gaokao", o vestibular chinês.
"Esse tratamento é um desperdício de tempo e dinheiro", diz ele, de cabeça baixa.
A conta é salgada. Cada interno custa aos pais 9.300 iuanes (R$ 3.592) por mês, o triplo do que ganha a maioria das famílias chinesas.
Tao diz não achar caro pelo serviço prestado e encerra o assunto sem rodeios: "Não somos uma instituição de caridade".
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