Imagine você: a partir de 23 de junho, boa parte dos 30 milhões de brasileiros que acessam o Facebook diariamente através do celular, podem ficar em situação irregular, ao menos até que sejam regulamentadas, por decreto, as exceções à neutralidade de rede como definida no Marco Civil da Internet. Isso porque, na opinião do autor da lei, deputado Alessandro Molon, e alguns advogados, inclusive da consultoria legislativa do Senado Federal, o Marco Civil proíbe o acesso gratuito a determinados serviços na Internet.
Mas há controvérsia.
Na prática, o acesso gratuito ao Facebook no celular tem colocado em lados opostos não só os defensores do princípio da neutralidade de rede e as teles, como também muitos advogados, em meio a uma verdadeira guerra de interpretações do texto legal.
As argumentações são bem fundamentadas e revelam muitos aspectos desse complexo mundo das redes de telecomunicações e da Internet.
Vejamos.
Atualmente, a maioria das operadoras móveis oferecem acesso gratuito ao Facebook pelo celular como bônus do pacote de voz. O consumo de dados para acesso ao Facebook a partir desses aparelhos não é cobrado em nenhuma das pontas: nem do Facebook, nem do usuário final. Uma das razões pela qual a Vivo não concordou em oferecer a gratuidade para seus clientes, de acordo com Erick Mello Senra Rodrigues, gerente de Estratégia Institucional e Regulatória da companhia.
“Daqui a pouco um outro provedor de serviços decide que ele também tem o direito do acesso gratuito ao conteúdo dele, porque se o Facebook, o Twitter ou outros têm, ele também tem, por uma questão concorrencial. E a gente acha que se a gente defende que a infraestrutura de rede tem que ser paga, por uma questão de princípio, não podemos dar gratuidade, a menos que o Facebook tope pagar pelo que o usuário está deixando de pagar. Se o Facebook pagar a gente topa”, me explicou o executivo da Vivo esta semana, durante uma café da manhã da TelComp (Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas) que debateu o Marco Civil.
O modelo defendido pela Vivo se assemelha muito com o que o acordo fechado entre a Comcast e a Netflix nos Estados Unidos, temido por todos aqueles que defendem a neutralidade de rede, por flexibilizar a neutralidade na ponta do provedor de aplicação. Na prática, o que a Netflix fez foi criar uma rede IP direta, passando por dentro da Internet, para que o seu conteúdo chegue mais rápido ao usuário final da Comcast, segundo as duas empresas, sem que haja necessidade de a Comcast reorganizar o tráfego para priorizar os pacotes da Netflix em detrimento dos pacotes do YouTube ou do Hulu, por exemplo.
Mas, segundo o executivo da Vivo, não é isso que acontece com o Facebook gratuito. “O acordo com o Facebook é simplesmente um acordo comercial. Não tem priorização de tráfego. O tráfego de dados simplesmente não é cobrado”, explica.
Razão pela qual, no entendimento do advogado Renato Opice Blum, durante palestra no evento da Telcomp, o acesso gratuito ao Facebook não fira a neutralidade de rede, conforme argumenta Carlos Eduardo Elias de Oliveira, do Núcleo de Estudos e Pesquisas
da Consultoria Legislativa do Senado Federal.
“O Marco Civil proíbe a degradação ,discriminação, distinção do tráfego, salvo por questões técnicas. A distinção pode decorrer de acordos comerciais que deem uma condição mais favorável aos players, desde que não haja prejuízo para o consumidor final, o internauta. Portanto, eu posso fazer um acordo comercial com o Facebook e dar o acesso de graça em um plano de voz”, afirma Opice Blum. “Não tem nada no Marco Civil que impeça esse tipo de acordo”.
O consultor jurídico do Senado, reconhece que “a oferta gratuita de acesso à determinada aplicação é uma estratégia de marketing, pois evidentemente tanto o provedor de conexão, que amplia sua base de usuários e o volume de tráfego por suas redes, quanto o provedor de aplicações, que incrementa o potencial publicitário de seu serviço, têm benefícios econômicos indiretos por essa oferta”. Mas argumenta que “ao estimular o acesso a determinada aplicação (como o Facebook), o provedor de conexão viola o princípio da neutralidade de rede, pois privilegia o conteúdo de uma aplicação em detrimento de outro, redirecionando (ou estimulando o redirecionamento) o internauta a determinada aplicação”.
“A gratuidade do Facebook não impede o usuário de acessar o site X, Y, Z, caso o usuário tenha um pacote de dados. Apenas não desconta o acesso ao Facebook da franquia de dados”, argumenta Opice Blum. “O acesso gratuito ao Facebook é uma condição comercial especial”, argumenta o advogado. “O que o artigo nono diz é que ninguém vai poder escolher o que o internauta vai acessar. Não posso proibir o acesso”, afirma Opice Blum. Dar de graça não é proibir o acesso a outros sites.
Retórica que, com certeza, será usada nos tribunais para defender a gratuidade. Outra, certamente, será a baseada no argumento da inclusão digital. O próprio CEO do Facebook lançou mão dele, este ano, durante o Mobile World Congress, para tentar convencer as operadoras de telefonia a embarcarem no projeto Internet.org.
A proposta do Facebook é a de que as operadoras móveis façam parcerias para oferecer acesso gratuito a “um conjunto de serviços básicos”, como a Wikipedia e a própria rede social. Zuckerberg gostaria de ver todas as operadoras oferecendo acesso barato ou até gratuito a determinados serviços. Assim, na opinião do CEO da rede social, fomentariam a compra de seus serviços de conexão para outros fins. “A remuneração viria com o interesse desses usuários em novos produtos”, disse Zuckerberg durante o Congresso.
Aqui no Brasil, todas as vezes que o usuário do acesso gratuito ao Facebook clica em um link na rede social que leva a páginas fora dela, recebe uma mensagem alertando que a partir do momento que concordar em sair da rede social a navegação fará uso de um plano de dados ativo, porque o acesso será cobrado.
Ora, se o provedor de conexão só dará privilégio a uma determinada aplicação (como o Facebook) em detrimento de outra (como o Youtube) isso não é admitido, afirma o consultor jurídico do Senado ao interpretar o Marco Civil. “Aliás, isso viola até mesmo a natureza plural e livre da internet”, afirma o parecer assinado por Carlos Eduardo Elias de Oliveira. “Se os provedores de conexão puderem manipular o acesso dos internautas a determinadas sites, a natureza plural da internet será comprometida”.
A briga vai ser boa. Um decreto a ser emitido pela Presidente da República, com prévia oitiva da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e do Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br), especificará os casos que excepcionarão o princípio da neutralidade de rede. O acesso gratuito a determinadas aplicações via plano de voz estará entre as exceções? Precisa estar para ser proibido ou legitimado?
Outro motivo de discórdia é a venda de planos com franquia de dados. De acordo com o parecer do Senado, essa prática é legítima. O acesso gratuito ao Facebook é uma franquia de dados?
Cenário mais temido
Qualquer brecha no princípio de neutralidade de rede, por menor que seja, preocupa os ativistas digitais. Mas o cenário mais temido é, sem dúvida, o defendido pela Vivo: o Facebook pagando pelo consumo de dados dos usuários. O próprio parecer do Senado parte do princípio de que a a oferta privilegiada ao Facebook é feita por meio de uma velocidade de conexão mais célere, ainda que sob o pretexto da gratuidade. O que não é o caso.
Hoje, para a oferta gratuita do Facebook, há distinção dos pacotes? Há. Mas segundo os técnicos, apenas para não cobrar pelo seu tráfego na rede. Não há nenhuma priorização do tráfego, como acontece no acordo entre Netflix e Comcast.
Mas, a exemplo do que acontece agora com a FCC (Federal Communications Commission, a Anatel norte-americana), a equipe por trás da redação do Marco Civil chegou a receber propostas das teles para que esse tipo de arranjo ficasse explícito e a neutralidade não valesse para redes IP dentro de redes IP. Mas opção dos elaboradores do Marco Civil foi foi encarar a rede menos do ponto de vista estritamente técnico e mais do ponto de vista da oferta do serviço ao consumidor, para evitar brechas que possam liberar os provedores de conexão a darem tratamento preferencial ao tráfego de algumas empresas de conteúdo, desde que esses acordos estejam disponíveis a todas as empresas interessadas, em termos “comercialmente razoáveis”.
Nos Estados Unidos, o próprio Facebook se posicionou contra o modelo proposto pela Vivo, em análise na proposta de regulamentação da neutralidade de rede a ser encaminhada pela FCC ao Congresso americano, em breve.
Aqui a torcida agora é para que, de fato, a regulamentação das exceções à neutralidade de rede seja feita de forma aberta e participativa. Só um debate aberto e estruturado ajudará a delinear os limites, sem prejuízo dos usuários.
As operadoras brasileiras apostam que o governo não vai ter peito para tirar de milhões de brasileiros o direito ao acesso gratuito ao Facebook. Será?
Os ativistas digitais argumentam que a neutralidade de rede é um direito muito maior do que o acesso gratuito à rede social. Resta saber se os consumidores brasileiros estão preparados para compreender a amplitude e a importância dessa discussão.
Vale lembrar que, como o acesso gratuito ao Facebook e ao Twitter é tratado pelas operadoras como uma promoção, na própria página do serviço consta o lembrete de que “a promoção é válida por tempo ilimitado e pode ser cancelada a qualquer momento por exclusivo critério da opredora”.
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