segunda-feira, 17 de junho de 2013

Folha de S.Paulo: Temores quanto à privacidade abalam setor de tecnologia e dados


Os sonhadores, cérebros e esquisitões que construíram a internet tinham a esperança de que ela se tornasse uma ferramenta de libertação e conhecimento. Na semana passada, emergiu uma visão muito mais sombria, com novas revelações sobre a forma pela qual o governo dos Estados Unidos vem usando a rede como instrumento de vigilância e rastreamento.

No Vale do Silício, lugar que não está acostumado a duvidar do brilhante futuro que está sendo perpetuamente criado por suas companhias, a sensação era de palpável desgosto.

"A maioria das pessoas que desenvolveram a rede se incomoda pelos abusos que ela está sendo usada para cometer", disse Les Earnest, professor aposentado de ciência da computação na Universidade Stanford e criador de um conceito que se assemelhava ao Facebook e foi implementado nove anos antes de o criador da rede social nascer.

"Desde o começo, nos preocupávamos com a possibilidade de que os governos tomassem o controle. Bem, o nosso governo enfim encontrou um modo de fazê-lo".


O mundo da tecnologia sempre se esforçou para manter Washington afastada. Regulamentação governamental sufocaria a inovação, os empreendedores costumavam repetir regularmente. Para eles, os burocratas precisavam se manter longe de coisas que não compreendiam, o que significava tudo que se faz no Vale do Silício.

Assim, a primeira coisa intrigante para alguns observadores, agora, é o fato de que companhias importantes - entre as quais Microsoft, Google, Yahoo, Apple e Facebook - aparentemente facilitaram o acesso da Agência Nacional de Segurança (NSA) aos seus dados. Só o Twitter parece ter recusado.

As companhias negam ter colaborado diretamente com o governo no projeto, chamado Prism. Mas não parecem ansiosas por falar sobre como exatamente elas colaboraram indiretamente, e sobre que limites estariam dispostas a impor a essa colaboração.

Os empreendedores do Vale do Silício estão insistindo publicamente em mais transparência.

"O sucesso de qualquer companhia do Vale do Silício que atenda diretamente o consumidor se baseia não apenas no valor dos produtos que ela ofereça aos usuários mas também no nível de confiança que seja capaz de estabelecer", diz Adriano Farano, co-fundador da Watchup, produtora de um app para o iPad que personaliza vídeos jornalísticos. "O que está em jogo aqui é a credibilidade de todo um ecossistema".

Trata-se de um ecossistema que depende de dados pessoais. O Prism, que recolhe e-mails, vídeos, mensagens de voz e dados armazenados, entre outras formas de informação transmitidas via internet, foi exposto em um momento no qual a possibilidade de privacidade on-line de fato parece estar em dúvida.

Novas tecnologias como o Google Glass avançam incansavelmente por territórios que até recentemente eram inatingíveis. De grandes empresas a novas companhias, o setor de tecnologia fervilha com planos para recolher os dados mais íntimos de seus usuários e usá-los para vender coisas.

"Estamos pressionando o governo a nos proteger, mas também colocamos mais e mais informações sobre nós mesmos em lugares que permitem que outras pessoas as vejam", diz Christopher Clifton, cientista da computação da Universidade Purdue que pesquisou extensamente sobre métodos de coleta de dados que preservam a privacidade. "O fato de que parte desses dados serão de fato estudados pode ser perturbador, mas não deveria surpreender".

Edward Snowden, ex-funcionário da Agência Central de Inteligência (CIA) que revelou no domingo ter sido o responsável pelo vazamento de documentos sobre a vigilância do governo ao jornal britânico "Guardian", está entre os mais incomodados quanto a isso. Em entrevista ao jornal, ele classificou a internet como "as mais importante invenção na história humana". Mas acrescentou acreditar que seu valor estivesse sendo destruído pela vigilância incessante.

"Não me vejo como herói", ele afirmou ao jornal, "porque o que estou fazendo é motivado pelo autointeresse. Não quero viver em um mundo no qual não existe privacidade, e com isso espaço algum para a exploração intelectual e a curiosidade".

O presidente Barack Obama, tentando atenuar os protestos, diz que os alvos do programa Prism são cidadãos estrangeiros, e que vale a pena ceder um pouco de privacidade em troca de mais segurança.

"Creio que essa declaração seja perigosa", diz Bob Taylor, cientista da computação que desempenhou papel importante, nos anos 60, em formular o que no futuro seria a internet. "O governo deveria ter nos informado do que estava fazendo. E isso sugere um problema mais fundamental: o de que não temos controle sobre o nosso governo".

Para alguns luminares da tecnologia cujos sentimentos por Washington nada têm de calorosos, as revelações sobre o Prism tiveram impacto especial. Foram recebidas como um golpe pessoal.

Bob Metcalfe, aclamado inventor do método padronizado de conectar computadores em um mesmo local, escreveu no Twitter que estava menos preocupado com as ações da NSA do que "com a forma pela qual o regime Obama usará seus dados para reprimir a oposição política, ou seja, eu".

PROBLEMA ANTIGO

Mas se o Vale do Silício está alarmado sobre as maneiras pelas quais dados pessoais agora percorrem todas as vielas da internet e o possível abuso desses dados, é importante destacar que o problema estava por surgir já há muito tempo.

As grandes fabricantes de computadores sempre venderam sistemas ao governo, e empresas iniciantes de toda espécie traficam com informações pessoais, mas as companhias sempre tentaram evitar regras governamentais que restringissem sua visão -e seus lucros. E também se provaram competentes em seus esforços de lobby.

Ameaças de autoridades regulatórias como Christina Varney, a especialista em internet da Comissão Federal de Comércio (FTC) que desejava fiscalizar mais o uso de dados pessoais on-line, resultaram na formação da Online Privacy Alliance, em 1998. Essa organização setorial recebe o crédito por conduzir o debate a um terreno favorável ao setor.

A principal porta-voz do grupo, hoje, é Varney, que passou pela porta giratória de Washington e emergiu como defensora das empresas.
Em 1999, Scott McNealy, presidente-executivo da Sun Microsystems, resumiu a atitude do Vale do Silício quanto aos dados pessoais com uma declaração que serve como definição para o boom da internet: "Você tem privacidade zero. Pare de se incomodar com isso", ele disse.

McNealy não retira o comentário, ou não todo ele, mas como Metcalfe, hoje se preocupa mais do que no passado sobre possíveis abusos por parte do governo. "Você deve ter medo por a ATé T dispor dos seus dados? O Google?", ele questiona. "São entidades privadas. A AT&T não tem porque ou podem me prejudicar. Jerry Brown e Barack Obama podem". McNealy é crítico severo do governo estadual da Califórnia e de Brown, o governador, e diz que suas declarações de impostos passam pela malha fina todos os anos.

Mas argumentar que os fabricantes de computadores têm alguma responsabilidade pela criação do Estado de vigilância, ele diz, "é como culpar os fabricantes de armas pela violência ou uma montadora de automóveis pelos motoristas embriagados". O problema real, ele diz, é "os avanços no alcance do governo. Acho ótimo que eles estejam tentando identificar o próximo terrorista. Mas logo começo a imaginar se isso significa que vão me bisbilhotar ou me prender".

A Microsoft recentemente vem se definindo como defensora da privacidade --ao menos no que tange ao Google. Ray Ozzie, que comandava a divisão de software da empresa, foi um dos líderes do setor a soar o alarme na semana passada.

"Espero que as pessoas acordem, realmente acordem, para o que está acontecendo na sociedade, da perspectiva do Grande Irmão e da perspectiva do pequeno irmão", disse Ozzie durante uma conferência em Nantucket, de acordo com o jornal "Boston Globe". Mas ele não mencionou o possível papel da Microsoft no Prism.

Aaron Levie, fundador do Box.com, um popular sistema de compartilhamento de arquivos, inicialmente brincou no Twitter que o Prism estava simplesmente reunindo em um mesmo banco de dados todos os dados do Gmail, Google, Facebook e Skype. "A NSA chegou antes que cerca de 30 startups com essa ideia", ele escreveu.

A declaração é engraçada porque é verdade, mas também porque os interesses do governo e os do Vale do Silício não estão necessariamente em conflito nesse caso.

"A questão mais importante é a da transparência e da falta de visibilidade sobre como nossos dados estão sendo usados", disse Levie. "O governo e o setor de tecnologia claramente precisam se unir e criar modelo melhor para isso".

Enquanto isso, alguns líderes da tecnologia optam por manter a discrição. Gordon Eubanks, empreendedor com 30 anos de experiência no Vale do Silício, compreende os dois lados do argumento quanto à privacidade e segurança. Até que a discussão se resolva, diz, "eu pretendo tomar cuidado com as informações que revelo. Não digo nada on-line sobre onde moro, minha família, meus bichos de estimação. Sou cauteloso até quanto ao que eu 'curto'".

Fonte: STREITFELD, DAVID . "Folha de S.Paulo - Tec - Temores quanto à privacidade abalam setor de tecnologia e dados - 17/06/2013." Folha Online. http://www1.folha.uol.com.br/tec/2013/06/1295094-temores-quanto-a-privacidade-abalam-setor-de-tecnologia-e-dados.shtml (accessed June 17, 2013).

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