quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Folha de S.Paulo: Buscas sem o Google são como usar redes sociais sem o Facebook



Buscas sem o Google são como usar redes sociais sem o Facebook: inimagináveis. Mas os excelentes algoritmos de uso exclusivo e os funcionários excepcionalmente talentosos dessas duas empresas explicam apenas em parte o domínio exercido por cada uma delas em seu campo.

O motivo real é que tanto o Google quanto o Facebook começaram cedo em suas áreas, acumularam montanhas de dados sobre seus usuários e agora exploram esses dados de modo agressivo a fim de oferecer serviços únicos que seus concorrentes, menos dotados de dados, simplesmente não conseguem acompanhar, não importa o quanto seus modelos de negócios sejam inovadores.

As buscas personalizadas do Google ou o recurso Graph Search do Facebook são bons exemplos. Os dois são fáceis de reproduzir; o que os destaca são os dados disponíveis sobre os usuários. Assim, o Google indica resultados endossados pelos amigos de quem realiza a busca diretamente nos resultados; o Graph Search do Facebook permite que um usuário recorra à sabedoria de seus amigos e dos amigos destes amigos.

As duas companhias adotaram abordagens bem sucedidas e conseguiram monetizar o nosso "gráfico social" -um termo que esteve em voga um dia para descrever as muitas conexões sobrepostas que temos para com outras pessoas.São coisas pequenas como o gráfico social que explicam por que um serviço de buscas melhor e mais inovador ou uma rede social com mais respeito pela privacidade do usuário teriam dificuldade para concorrer com o Google e o Facebook. Enquanto o domínio dessas empresas tiver por base as vastas montanhas de dados de que dispõem sobre seus usuários, os concorrentes estarão fadados a fracassar.

Se tivéssemos de reconstruir do zero nossa infraestrutura de informação, certamente perceberíamos que o sistema atual é péssimo para a concorrência. De que forma poderíamos tornar as coisas diferentes? Uma opção poderia ser operar o "gráfico social" como uma espécie de instituição pública, com autoridades regulatórias estatais para garantir que todas as companhias obtivessem acesso igual a informações assim cruciais.

Muitas de nossas conexões sociais são anteriores a -e algumas podem até sobreviver a- Google e Facebook; essas companhias as mapearam bem -mas isso não deveria impedir que pensemos em maneiras alternativas de mapeá-las e depois oferecê-las aos interessados. Assim, em lugar de despejar dinheiro público na criação de serviços de busca melhores -missão tentada e rapidamente cancelada por alguns políticos europeus-, os governos poderiam se concentrar em garantir que a concorrência seja a mais lisa possível, no campo do registro de dados. Serviços de busca e redes sociais melhores emergiriam sem ajuda, e sem necessidade de apoio público adicional.

Um esquema como esse poderia ter muitos outros benefícios. Por exemplo, as autoridades regulatórias seriam capazes de exercer muito mais controle sobre como os dados de usuários são recolhidos e acessados por terceiros. Seria possível anonimizar esses dados de forma a que melhores serviços personalizados possam ser construídos sem interferir com a privacidade dos usuários. O medo quanto à "bolha dos filtros" está sendo muito superestimado: a personalização não é um mal em si - o que deveria nos incomodar são as trilhas de dados que ela deixa em sua esteira.

Poucos meses atrás, essa proposta poderia parecer razoável, mas em última análise quixotesca. Para começar, parecia haver perigosamente pouco interesse em reconstruir -ou mesmo repensar- a infraestrutura mundial de informação.Imagine o esforço que seria necessário para recolher todas essas informações e organizá-las de maneira fácil de usar. Quem poderia bancar uma empreitada dessa ordem?

Agora que Edward Snowden denunciou as extensas operações de espionagem da Agência Nacional de Segurança (NSA) norte-americana, a questão parece obsoleta. Um exemplo é a muito discutida coleta de metadados pela NSA -informações aparentemente benignas (ou assim eles dizem) sobre quem se comunica com quem, e quando. É exatamente esse tipo de metadados que seria necessário para construir um gráfico social público e mais bem administrado. Na verdade, é provável que a NSA já o tenha criado -e não só para os Estados Unidos mas para usuários de muitos outros países, igualmente, em muitos casos com a cooperação tácita dos serviços de informações e dos prestadores de serviços de telecomunicações nesses países.

Podemos debater a ética e a legalidade dessas iniciativas até cansar -e sugiro que o façamos, porque, com base no que Snowden revelou, o sistema da NSA está envolto em segredo, não consta com fiscalização legislativa apropriada e desfruta de apoio retórico e de lobby ilimitado por parte do complexo industrial-militar. Portanto, sim, é preciso reformular as práticas de coleta de dados da NSA tendo em mente a prestação de contas à sociedade.

Mas essas questões são assunto para o futuro. No presente, temos uma questão muito mais pragmática a tratar: a NSA já tem todos esses dados, e eles não vão desaparecer. (Aliás, o centro de armazenagem de dados que a NSA está supostamente construindo no Utah, causa de tanta discussão, sugere o contrário.) Seria um erro colossal não desenvolver um arranjo institucional de alcance mundial que torne ao menos parte desses dados disponíveis para uso público. No (utópico) mínimo, deveria ser possível criar um gráfico social rudimentar e oferecer acesso mundial a ele -sob supervisão de uma agência civil, talvez parte da ONU. Os Estados Unidos, que sempre pregam o livre mercado ao resto do mundo, talvez pudessem tomar a liderança em tornar mais competitivos os mercados de buscas e redes sociais.

Existem, é claro, muitos obstáculos técnicos e potenciais preocupações de privacidade que deveriam ser tratadas. Fortes regras de anonimato e a liberdade de opção para indivíduos que não desejem fazer parte do sistema são essenciais.As empresas de tecnologia que hoje dominam o mercado com certeza não gostariam da ideia, já que foram elas que forneceram todos esses dados à NSA.Bem, sim, mas tanto o Google quanto o Facebook sabem que, mais cedo ou mais tarde, as autoridades regulatórias compreenderão o verdadeiro motivo para que haja tão pouca concorrência nos mercados de busca e redes sociais, e façam algo a respeito. Esse "algo" pode ser muito mais drástico do que aquilo que estou propondo aqui.

A tarefa mais difícil seria convencer os defensores da privacidade de que a ideia merece sua atenção; à primeira vista, não parece merecer. O que poderia ser mais insano do que conferir a mais uma nova instituição acesso a quase tantos dados quanto o Google e o Facebook já dispõem? Mas a questão é mais complicada, especialmente porque, caso o plano funcione, poderíamos ter mais inovações nas buscas e redes sociais -e algumas das novas empresas poderiam oferecer mais proteções aos seus usuários, já que seus modelos de negócios não estariam necessariamente associados a uma coleta agressiva de dados.

Em outras palavras, a verdadeira escolha que temos hoje é entre um futuro no qual o Google e o Facebook continuarão a dominar seus mercados principais, recolhendo mais e mais dados sobre os usuários, e um futuro no qual o poder dessas companhias será restringido pela concorrência. No momento, os usuários têm pouca escolha a não ser manter o Google e o Facebook, porque os dados que estes já detêm produzem melhores resultados de busca e redes sociais mais ricas.

O obstáculo mais importante seria convencer as NSAs do planeta, nos Estados Unidos e em outras partes, de que o projeto serve aos seus interesses -o que claramente não é verdade. Os espiões estão perfeitamente satisfeitos com a centralização das telecomunicações que temos em curso, o que resultará em concentração de dados em poucos núcleos, como o Google e o Facebook, que continuarão a sugar dados de seus usuários e organizá-los de maneira que facilita a vida da NSA.

Um mercado verdadeiramente competitivo de busca e redes sociais -no qual haja dezenas de grandes empresas, todas com diferentes abordagens quanto a privacidade e coleta de dados- seria uma dor de cabeça para os serviços de inteligência.

Além disso, se dados mais íntimos sobre os usuários forem detidos em uma agência pública sob a devida fiscalização -de um órgão encarregado de protegê-los contra abusos desnecessários e dotado da autoridade legal necessária a recusar demandas indevidas da NSA -, isso poderia ajudar a proteger a privacidade dos usuários e a controlar os avanços do aparato de segurança nacional.

Uma proposta imodesta? Talvez. Mas já temos que engolir tantos limões com a marca da NSA, melhor aprendermos a fazer limonada.

Fonte: Morozov , Evgeny . "Folha de S.Paulo - Colunistas - Evgeny Morozov - Buscas sem o Google são como usar redes sociais sem o Facebook - 28/08/2013." Folha Online. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/evgenymorozov/2013/08/1332639-buscas-sem-o-google-sao-como-usar-redes-sociais-sem-o-facebook.shtml (accessed August 28, 2013).

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