Finalmente, o Marco Civil é aprovado na Câmara! Mas o que isso impacta nas nossas vidas? Bem, se você é daqueles que não vive sem internet, que usa serviços na nuvem, que gosta de expressar sua opinião, participa de redes sociais, contrata banda larga e está preocupado com a sua privacidade, então o Marco Civil vai fazer parte da sua vida.
Nos últimos 25 anos, desde o “WWW” de Tim Bernes Lee, o mundo vive um período de mudança de um cenário presencial e corpóreo para um novo modelo digital e intangível. O modelo de riqueza mudou, passou a ser o conhecimento, logo, se a informação virou moeda, tudo que é feito com ela afeta o nosso patrimônio e até mesmo a nossa reputação.
Até então, o maior desafio tem sido a definição de quais valores proteger neste mundo mais fluido, mais livre, sem fronteiras e em tempo real? Por certo a liberdade tem sido tratada como direito fundamental neste “Marco Social-Tecnológico”. Mas a liberdade sempre tem um preço.
De certo modo o Marco Civil da Internet Brasileira não afeta apenas o brasileiro, já que prevê em seu artigo 11 que mesmo que o serviço esteja no exterior, que o servidor esteja fora do país, a lei nacional deva ser aplicada sempre que houver pelo menos uma das partes no Brasil.
O Marco Civil trouxe consigo a repetição do grito de guerra da Revolução Francesa “Liberté, Égalité, Fraternité”. A liberdade é tratada em vários artigos. A igualdade seria a discussão da neutralidade. E a fraternidade seria o desafio educacional já que haverá muito mais exposição de pessoas vítimas de conteúdos digitais ofensivos trazidos pelo excesso da própria liberdade sem responsabilidade, que ficou sedimentada nos artigos 18, 19, 21.
Mas será que o texto aprovado pela Câmara está bom? Está condizente com a proposta inicial do Marco Civil, com seu discurso, com o que foi “vendido para a Sociedade”? Bem, podemos dizer que para viabilizar foi gerada uma versão mais leve, ou melhor, um “Marco Civil Flex”.
Conforme o artigo 9, flexibilizamos a neutralidade, por um lado garantimos a não diferenciação dos dados que trafegam (e-mail, vídeo). Mas, por outro, lado foi mantida a possibilidade da cobrança diferenciada de serviços de conexão de internet e tráfego de dados, ou seja, o consumidor brasileiro continuará pagando diferente para ter mais velocidade, o que no final implica na promoção de desigualdade social no tocante a inclusão digital.
Quanto mais rápida a conexão, maior o acesso a conteúdos diferenciados e maior a qualidade. O mesmo se aplica às empresas, quem tem uma internet melhor tem mais chances de competir no mercado global, plano e digital. Então estar em um país com custos baixos ou irrisórios de internet super rápida acessível para todos faz toda a diferença no arena internacional dos negócios. Mas este não é o caso do Brasil. Pior, as Telcos chegaram a ameaçar aumentar o custo da conexão para nivelar por cima se tivesse que ser igual para todos (mesmo valor faria todos pagarem mais e não menos).
Flexibilizamos a questão da prioridade de passagem de dados, apesar de se tentar por rédeas nisso. Logo, onde não deveria haver discriminação alguma nem degradação de dados acabou trazendo uma espécie de “isonomia desigual”, dependendo de critérios técnico-políticos alguém ou algo pode sim passar na frente em detrimento dos dados alheios. O executivo passa a ter o controle do “sem parar” da infovia nacional, com o único requisito de ter que ouvir a Anatel e o CGI. E se não ouvir, qual a consequência prevista? Nenhuma.
Flexibilizamos a questão da proteção dos dados e privacidade no uso de serviços na nuvem, impondo a aplicação de lei brasileira a empresa em território estrangeiro. Não sei como isso será viável, vamos ter que pagar pra ver. Quando um país desrespeita a lei de outro país há 3 caminhos de solução: o primeiro envolve embargo econômico, o segundo envolve boicote popular em que o povo deixa de consumir produtos daquele país em retaliação e, por último, temos a declaração de Guerra. No caso do Brasil, acredito que nenhum destes caminhos é viável. Só podemos “ficar de mal” se os EUA não cumprirem com o Marco Civil, por exemplo.
Flexibilizamos a proteção constitucional da honra, imagem e reputação do indivíduo, basta observar os artigos 7º., 9º., 22. Agora só dá pra remover conteúdo de forma direta e imediata junto ao provedor da página se o mesmo envolver nú, cena de sexo, infração de direito autoral ou exposição de menor de idade. Fora isso, só com ordem judicial e sem nenhuma garantia de remoção completa. Caberá a vítima dizer exatamente onde está o conteúdo que deseja remover e o Juiz decidir com a mesma clareza e objetividade, senão não sai do ar.
Quanto a descobrir quem foi o autor do dano, do ilícito, para coibir crimes e punir infratores, vai ficar muito mais difícil, conforme artigos 10, 13, 14, 15 e 16. Da forma como está no Marco Civil provedores de conexão e aplicação não podem saber que dados estão no outro, logo, há grande chance de não conseguirmos associar o fato, a conduta, a uma identidade real e válida. E estas provas só são apresentadas pela via judicial.
Pelo texto atual, mesmo a autoridade pode no máximo pedir preservação de prova por ofício ou via extrajudicial, a prova mesmo só vem com pedido do juiz, e quando vem. Para tentar acelerar o processo, há previsão de uso dos Juizados Especiais. Mas imagine, vai parar tudo, os casos de consumidor ficarão na fila atrás dos de difamação (que não são poucos). Lá vamos nós super lotar o judiciário, o que vai gerar mais morosidade e mais danos sociais!
Ao final, os artigos 26 e 27 do Marco Civil tratam do dever constitucional do Estado na prestação de campanhas educativas sobre segurança digital e uso responsável da internet. Mas isso quer dizer que vai sair do nosso bolso, de imposto. Por que não ficou sendo uma obrigação para os players deste mercado, para as Telcos, os provedores de acesso, de aplicações, de conteúdos?
Como já foi dito, estes terminaram ficando isentos de qualquer responsabilidade civil associada ao comportamento ou conteúdo de seus usuários. Esta só ocorre se cientes por ordem judicial (e não mais pela ferramenta de denúncia do serviço) não agirem para atender a mesma, após a certeza de que é tecnicamente viável, caso contrário, se não conseguirem atender também não respondem.
Então, quem perde e quem ganha se o Senado aprovar o Marco Civil como fez a Câmara?
Bem, perde a vítima de ofensa digital, os anunciantes e as empresas de mídias digitais, a autoridade policial que vai ter mais dificuldade de aplicar uma ação rápida em resposta a um crime digital, perde a força de segurança da Copa do Mundo e Grandes Eventos esportivos, pois o Marco Civil já entra em vigor em 60 dias e vai dificultar a resposta a ameaças terroristas digitais bem como a identificação dos mesmos, perde o Judiciário pelo excesso de judicialização das relações sociais digitais, perde o contribuinte que logo terá um imposto a mais para pagar a conta da educação digital.
E quem ganha? Ganham os Provedores de Conexão, os Provedores de Aplicação, os Provedores de Conteúdo de Terceiros, os Extremistas e Radicais dos excessos da liberdade na web tais como torcidas organizadas que vão deitar e rolar na difamação, os criminosos, golpistas e terroristas digitais. O cidadão comum, usuário de internet, no final, ganhou pouco.
É um início, o Marco Civil não deixa de ser um grande passo, mas excluindo o que já tinha previsão na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor, no Código Civil, no Código de Processo Civil, no Código Penal, avançamos ainda de forma singela para dar um tratamento adequado à esta nova realidade que independe de território e ordenamento jurídico.
A solução para temas tão relevantes como os tratados no Marco Civil só ocorrerá de fato se for em um fórum internacional, com assinatura de Convenção ou Tratado, pois o Direito Digital é Global e Extraterritorial. Até lá, ainda temos um longo caminho.
É advogada especialista em Direito Digital, sócia fundadora da Patricia Peck Pinheiro Advogados e autora de “Direito Digital”, editado pela Saraiva.
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É advogada especialista em Direito Digital, sócia fundadora da Patricia Peck Pinheiro Advogados e autora de “Direito Digital”, editado pela Saraiva.
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